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Empreendedorismo Social – O rei vai nu?

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Durante 10 anos trabalhei na área social e, mais recentemente, tenho-me dedicado ao estudo deste setor, pelo que tenho algum conhecimento prático e teórico sobre esta matéria, o que me leva a acreditar que tenho legitimidade para escrever este artigo.

Ao nível prático, trabalhei essencialmente com imigrantes indocumentados que se encontravam em situação de sem abrigo, e lutava diariamente contra as insuficiências de uma rede de apoio social que tende a deixar de fora os casos mais complicados, enquanto privilegia os casos de mais fácil resolução (aqueles que dão menos trabalho, consomem menos recursos e ficam melhor na estatística como «casos de sucesso»).

Os casos mais complexos, e que são geralmente os de maior vulnerabilidade, são por norma remetidos para uma abordagem caritativa que visa a redução dos riscos a que estas pessoas estão sujeitas mediante a prestação de apoios diretos relativos a necessidades essenciais – comida, roupa, medicamentos, higiene pessoal, etc.

Este tipo de abordagem é essencial para mitigar o sofrimento imediato de pessoas que se encontram em situação de emergência social, mas o seu impacto ao nível da gestão deste tipo de problemáticas é muito reduzido, dado que não age sobre os fatores estruturais que estão na sua origem.

É por isso com enorme preocupação que observo o florescimento de toda uma «indústria» orientada para o Empreendedorismo Social (e, já agora, para a Responsabilidade Social das Empresas) que se encontra muito focada (apesar de não exclusivamente) neste tipo de abordagem.

A meu ver, esta situação traduz a falta de conhecimento de terreno por parte das entidades e indivíduos nela envolvidas, a preferência pelas aparências em detrimento do real impacto das intervenções, e a opção generalizada por uma «inovação conservadora» que não ousa ir além das fórmulas e clichés já extensamente repetidos e testados.

É a tradicional abordagem paternalista da caridade(zinha) que reflete, e frequentemente reforça, os estereótipos sociais e o assistencialismo.

Em alternativa, uma abordagem verdadeiramente transformadora deverá necessariamente incluir um ingrediente chave que frequentemente está ausente nestas abordagens:

A horizontalidade das estruturas e processos de apoio social

Vivemos num país que gosta de dar o peixe mas não de ensinar a pescar. Isto porque ensinar a pescar implica dar poder. Poder para que as pessoas possam decidir o que fazer e como fazer. Poder para assumirem as rédeas do seu próprio destino, em vez de se conformarem com projetos de vida impostos superiormente.

O assistencialismo, seja ele de iniciativa pública ou privada (geralmente ambas estão relacionadas) é a ferramenta ideal para implementar todo um sistema que se alimenta da caridade e que alimenta essa mesma caridade. É necessário inverter urgentemente esta lógica de atuação.

Em vários países europeus existem organizações, estruturas e equipamentos que são geridos pelos seus próprios utentes, os quais participam ativamente na implementação das políticas que lhes dizem respeito. Segundo a FEANTSA (Federação Europeia das Organizações Nacionais que Trabalham com os Sem Abrigo), a participação de grupos sociais excluídos torna os processos políticos mais abertos e democráticos e cria um contexto favorável ao empoderamento.

Em Portugal, a aposta na participação tem surgido como resposta à necessidade de reforçar a legitimidade da governação, mas frequentemente esta aposta é mais aparente do que real. Estudiosos destas questões (1) chamam a atenção para a grande fragilidade dos processos participativos em Portugal, que se debatem entre o desejo de experimentação inovadora e o medo de ousar reformas verdadeiramente substantivas.

Daqui resultam diversos fenómenos que subvertem os processos participativos (sejam eles direcionados especificamente para populações particularmente vulneráveis ou não), como por exemplo:

  • A tendência para as hierarquias controlarem os processos participativos, mantendo os participantes vinculados a um modelo subordinado de participação;
  • O baixo grau de institucionalização das experiencias participativas, que não se transformaram ainda num direito adquirido dos cidadãos;
  • A reduzida ousadia metodológica na definição das práticas participativas;
  • Inovações participativas confinadas ao âmbito das políticas microlocais, sem abranger sectores estratégicos e estruturais para a qualidade de vida dos cidadãos.

 

Concluindo

As iniciativas na área social são por norma concebidas e implementadas por indivíduos e entidades que não pertencem aos grupos–alvo das ações. Esta abordagem é legitimada pelo argumento duvidoso da falta de capacidade destes grupos-alvo, o qual apenas fará sentido em casos em que estão envolvidos menores ou pessoas com défices cognitivos ou físicos consideráveis, ou com problemas severos do foro psiquiátrico.

As pessoas que se encontram numa situação de vulnerabilidade não podem ter por acréscimo o atributo de incompetência. São indivíduos adultos que certamente compreendem bem as suas próprias necessidades e aspirações e que, frequentemente, têm uma noção bastante clara daquilo que é desejável para si próprios. Podem necessitar de algum apoio na sua concretização, mas isso não implica que devam abdicar do seu direito de gerir as suas próprias vidas.

A violência institucional que está implícita nas abordagens paternalistas, por vezes de forma inconsciente por parte de quem as implementa com boa vontade mas pouca sensibilidade, traduz-se numa imposição de valores, normas e formas de estar e ser que não são os desejados pelos destinatários das ações. A lógica do «pobre e mal agradecido» pressiona para uma aceitação resignada que não se traduz em concordância e que compromete a efetividade das intervenções.

Uma verdadeira cultura de participação permitirá às pessoas em situação de vulnerabilidade encontrar as suas próprias soluções e alternativas, com o apoio informado de quem verdadeiramente compreende e respeita as suas opções. Ajudar não é doutrinar. Ajudar de forma construtiva consiste, acima de tudo, em criar as condições necessárias para que as pessoas em situação de vulnerabilidade se possam ajudar a si próprias.

Camila Rodrigues

Mulheres à Obra

 

(1) Allegretti, G., Dias, N. (2015) «Participação e cidadania», in Sousa, L. et all (org.), A reforma do poder local em debate, Lisboa: ICS.

 


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