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NÃO TENHA PLANO B

Essa semana eu quase caí numa armadilha quando vi um anúncio de emprego para trabalhar como recrutadora de uma grande imobiliária. Cheguei a marcar a entrevista. 

Não sou formada em recursos humanos mas esta é uma actividade que já desempenhei e por acaso até achei interessante, não fosse o furor comercial que impera no sector e que se alastra e contamina o RH das agências.

Acabei por não ir à reunião porque tive uma noite terrível na véspera (veja só a sabedoria de um corpo!) e não tinha a menor condição de conversar dignamente naquela manhã.

Não remarquei a entrevista. Nem vou remarcar.

Quando abracei o desafio de trabalhar nessa função no ano passado, quis crer que haveria uma interface significativa dela com a minha paixão e com o meu talento – a dinamização do potencial humano – e entrei de cabeça numa experiência que, apesar de muito enriquecedora, deixou os meus objetivos profissionais em stand by.

Oportunidades Inoportunas

Em nome de um ordenado e de uma suposta estabilidade, forcei-me às circunstâncias até o limite do suportável e fiz uma ginástica mental enorme para conectar as rotinas aos meus sonhos e convencer-me de que estava, sim, a caminhar na direção deles.

O “problema” é que quando nós temos sonhos já transformados em objetivos, eles ganham uma corporeidade, uma tangibilidade. As metas têm esse poder: antecipar o futuro e nos dar aquele gostinho de realização do sonho a cada movimento para concretizá-lo.

E, no meio desse caminho, surgem muitas do que eu chamo de “oportunidades inoportunas”. Convites para as mais variadas cenas pululam em nossas redes sociais, nos instigando a explorar outros sabores, e aqueles projetos (dos outros) que flertam com nossas competências parecem-nos altamente vantajosos.

Porém, quando já provamos o doce da realização, qualquer plano ‘B’ que se interponha entre nós e a nossa meta, por mais que saiba bem no começo, no fim é como fel, pois o simples facto de termos um plano ‘B’ revela a nossa desconfiança no nosso plano ‘A’.

Não quero o que desejo. Não desejo o que quero.

E essa fragilidade pode residir tanto no nosso desejo, como nas nossas competências e recursos ou ainda no nosso comprometimento em levar a efeito tudo o que for necessário para beber o afrodisíaco néctar da realização.

Quem nunca tiver enfrentado o paradoxo “desejo versus vontade” que atire a primeira pedra! Posso citar alguns exemplos rápidos de planos ‘A’ super queridos que nos escapam pelos dedos à menor sombra de um plano ‘B’ verdadeiramente desejado:

1.    Permanecer no ginásio dormir mais um bocadinho

2.    Dedicar-se a um casamento desgastado X arriscar aquele novo engate

3.    Investir no nosso negócio de sonho X manter o emprego seguro

4.    Concluir a tese da pós-graduação X beber uns copos com os amigos

Anote isso: sempre que o seu plano ‘A’ tiver mais vontade que desejo, mais “eu gostava de” do que “eu quero isso de verdade”, os planos ‘B’ vão se tornar os sedutores mais poderosos do mundo! Caetano Veloso (assim como a maioria dos poetas) tinha razão… 

“Eu queria querer-te amar o amor

Construir-nos dulcíssima prisão

Encontrar a mais justa adequação

Tudo métrica e rima e nunca dor

Mas a vida é real e de viés

E vê só que cilada o amor me armou

Eu te quero (e não queres) como sou

Não te quero (e não queres) como és”

Já bastam as interdições do real e dos nossos julgamentos! Se o nosso desejo não for reconhecido e levado adiante, ficará ali a pedir passagem e a nos massacrar cada vez que o sufocarmos.

“Ah! Bruta flor do querer!”

Quando desejamos verdadeiramente uma coisa e algo em nós diz “amém” a esse desejo, passamos a agir de um lugar de integridade, os recursos e as habilidades começam a se articular e temos mais chances de ir até às últimas consequências para fazer acontecer.

Se o desejo é uma potência viva, é o que verdadeiramente nos governa e motiva, quanto mais pudermos operar com base nele e conectarmos, ao nosso plano ‘A’, essa força orgânica, menos aquelas oportunidades inoportunas nos vão seduzir.

Sabemos que nem sempre é tão linear assim; do contrário, eu sequer teria telefonado para o anúncio de emprego na imobiliária e aquela sua amiga casada sequer teria flertado com a rapariga giríssima do trabalho dela… 

Além disso, há as situações em que os recursos externos não estão disponíveis ou não temos acesso a eles, por ‘N’ fatores que fogem ao nosso controle, exigindo de nós uma dose extra de força para lutar – tanto pelo nosso sonho como pelo acesso a oportunidades que deveriam ser universais, como educação, saúde, moradia, alimentação e segurança.

Identificar o que realmente desejamos (e se desejamos aquilo que dizemos querer) é o primeiro passo para sair de uma busca por reconhecimento e validação externas e passar a reconhecer, então, a nossa potência mais viva e deixá-la fluir a nosso favor.

Creiam-me: o desejo vai fluir. Queiramos ou não, permitamos ou não, ele vai fluir. Resta saber se será em forma de sofrimento e sintoma ou se será em forma de realização.

Há saída para o desejo?

Um dos antídotos possíveis para este veneno do desalinhamento interno é a união de duas competências muito sofisticadas que formam o binómio disciplina-adaptabilidade.

A adaptação disciplinada é aquela que nos ajuda a nos implicarmos na realização de um desejo até o fim, com coragem para enfrentar os desafios que surjam no meio do caminho e nos livrarmos das distrações super interessantes… É uma obstinação, só que lúcida. 

Já a disciplina adaptável é aquela nos ajuda a lidar com os cortes que a realidade impõe, com a presença e a subjetividade do Outro e com as nossas crenças limitadoras, sem nos submetermos a um martírio ou a uma total acomodação… É uma flexibilidade, só que firme.

“Plano B” só tem sentido se for para ser “Plano A”

A disciplina, sozinha, pode sinalizar que o que nos move é da ordem do dever, algo de fora para dentro, imposto pela cultura, sem diálogo com o desejo, que começa a ficar sufocado. Assim, vencer as etapas para concretizar a vontade passa a depender de um esforço hercúleo.

A adaptabilidade, sozinha, acaba por ser uma resignação muito alargada diante dos obstáculos, uma negociação do desejo que o relega ao esquecimento, gerando efeitos colaterais e os mais diversos sofrimentos psíquicos.

Aprisionar a complexidade humana num foco monomaníaco não só é problemático como é prejudicial ao nosso desenvolvimento como pessoas. Alguns dirão que é mesmo patológico. Por outro lado, viver a pensar em “relvas mais verdes” não fará com que a sua fique vistosa.

Por isso, proponho que, antes de traçar qualquer estratégia, apenas (re)conheça o seu desejo. E se estiver no meio da execução de um plano ‘A’ e constatar a total desconexão dele com aquilo que quer de verdade, apenas permita que outro seja o seu Plano ‘A’.

d’A Renata Netto

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