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Desafios do Empoderamento Feminino

A comunidade Mulheres à Obra nasceu de uma inquietação partilhada por muitas mulheres em Portugal: a dificuldade de conciliar a família e o trabalho. Sendo um fórum de discussão sobre esta questão, foca-se essencialmente no empreendedorismo feminino enquanto via de empoderamento das mulheres: pela criação do próprio negócio, a mulher passa a ter poder de decisão sobre onde e como trabalha, o que lhe permite compatibilizar melhor as suas diversas responsabilidades profissionais e familiares.  

No entanto, facilmente se constata pelo debate gerado no grupo que esta solução é frequentemente um presente envenenado: por um lado, a desigualdade de género continua a empurrar para a mulher responsabilidades de cuidado e gestão doméstica que deveriam ser repartidas igualmente por ambos os sexos; por outro lado, a precariedade em que muitos negócios se desenrolam origina situações de elevado stress, sobrecarga laboral e carência financeira.

Daqui resulta que, para verdadeiramente empoderar as empreendedoras da nossa comunidade, é necessário agir sobre desigualdades estruturais muito profundas que afetam a nossa sociedade. Mas esta não é uma tarefa fácil.

Um presente envenenado

Até aos anos 1970, vivemos num contexto marcado pelo desenvolvimento dos Estados de Bem-estar, orientado por políticas que assumiam como prioritária a proteção social de todos os cidadãos e apostavam fortemente no desenvolvimento dos sistemas nacionais de Saúde, Educação, Habitação e Proteção Social, nomeadamente em caso de desemprego.

Infelizmente para Portugal, a transição para a democracia coincide com o fim deste período áureo, pelo que no nosso país o Estado Social permaneceu frágil e subdesenvolvido. Em 1973, com a crise do petróleo, o neoliberalismo afirmou-se como ideologia dominante, ao atribuir ao suposto poder excessivo dos sindicatos e do movimento operário a principal causa da recessão económica.

Por esta via, mobilizou considerável apoio político, com destaque para os governos de Margareth Thatcher e Ronald Regan. Um pouco por todo o mundo, o neoliberalismo foi ganhando terreno, nomeadamente na União Europeia, e hoje domina as vidas de todas nós. Particularmente, a Europa do Sul tem sido afetada por um processo de aumento das desigualdades, dada a incapacidade do Estado continuar a fornecer determinados bens e serviços, o que se acentuou com a crise financeira de 2008.

A lógica neoliberal é caracterizada pela “acumulação por espoliação”, ou seja, a concentração de riqueza e poder nas mãos de poucos através, entre outros fatores, da privatização do setor público, da mercantilização dos recursos naturais e da financeirização global: aqui o papel do Estado remete para a  redistribuição das classes mais baixas para as mais altas.

David Harvey

Este facto é bastante problemático e está na raiz dos desafios enfrentados pelas mulheres da nossa comunidade. Isto porque o neoliberalismo perceciona todas as ações humanas no domínio do mercado, não assumindo qualquer compromisso com a democracia. Neste contexto, a lógica neoliberal destrói o conceito solidário do Estado Social, substituindo-o pela noção de Estado empreendedor, segundo o qual cabe ao indivíduo a responsabilidade pelo seu enriquecimento ou empobrecimento (ou sucesso, na gíria neoliberal), à medida que recai sobre si a tarefa de se proteger individualmente, investindo na sua educação ou formação profissional para escapar ao desemprego e à precariedade financeira.

(O neoliberalismo) encobre o desemprego estrutural por meio da chamada uberização do trabalho e por isso define o indivíduo não como membro de uma classe social, mas como um empreendimento, uma empresa individual ou “capital humano”, ou como empresário de si mesmo, destinado à competição mortal em todas as organizações, dominado pelo princípio universal da concorrência disfarçada sob o nome de meritocracia.

Marilena Chauí

Uma das principais consequências desta crença é o aumento exponencial das desigualdades de rendimento, por via da precarização laboral e do esmagamento das classes médias. É esta a causa subjacente aos desafios enfrentados pelas mulheres da nossa comunidade: a dificuldade de fazer face a múltiplas responsabilidades numa sociedade com poucas oportunidades e recursos limitados, em que a luta de todos contra todos se assume como a principal estratégia de sobrevivência.

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Mulheres que mudam o mundo

Ao assumir plenamente a consciência destes factos, a comunidade Mulheres à Obra insere-se no âmbito de uma economia solidária transformativa que visa a efetiva emancipação das empreendedoras em Portugal. É um propósito ambicioso, que obriga a remar contra uma forte maré neoliberal que defende a ética do individualismo exacerbado e do sucesso individual.

Apesar do seu efeito nocivo, o qual tem sido amplamente documentado, o poder ideológico do neoliberalismo é tão forte e tão disseminado por entidades públicas e privadas, que as próprias empreendedoras acabam por aderir sem questionar a este sistema de crenças. Afinal, uma mentira repetida múltiplas vezes por inúmeros canais supostamente credíveis acaba por se transformar numa verdade incontestável para muitas pessoas.

Neste sentido, é desafiador captar parceiras para a comunidade, as quais poderiam garantir a sua sustentabilidade financeira e autonomia face às forças de mercado. Num contexto em que as empreendedoras estão muito focadas no seu sucesso individual, a prioridade é a busca por resultados imediatos, o que remete para segundo plano a criação de valor social. No entanto, é este o nosso caminho e acreditamos que gradualmente iremos conquistar o apoio necessário para defender uma economia solidária, democraticamente responsável e com oportunidades para todas.

Assim, poderemos contribuir para a criação de novas relações laborais centradas no valor humano, as quais não reproduzam as desigualdades existentes e favoreçam o desabrochar de uma nova realidade política, social e económica mais justa e sustentável.

A dimensão política das organizações de economia solidária traduz-se numa busca de significado sobre o que significa viver em conjunto numa democracia. Não se trata da conquista do poder, mas da conquista e controlo de espaços públicos autónomos onde a experimentação com novas formas de organizações económicas e políticas é possível.

Michela Giovannini

Imagem de StockSnap por Pixabay

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