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Tédio: a chave da (dignidade da) produtividade

Tédio na nossa vida

Sexta-feira, 18h.

Temperatura agradável, cidade bonita, pessoas alegres.

Rogério chama Gustavo para o happy hour.  

Saem juntos da empresa e vão caminhando para o barzinho, logo ali. 

Gustavo, sentindo-se incomodado, diz para Rogério: “Não deveria estar indo curtir… Não produzi nada essa semana…” 

Rogério retruca: “Qual é, Gustavo? Deu pra sentir culpa agora? Bora beber e relaxar, essa semana foi foda!”

Com aquele sentimento de ser um impostor, Gustavo fica em silêncio e segue.

Chegam no bar, começam a tomar a cervejinha sagrada.

Junto com ela, desce um gosto amargo de não merecimento, de fraude. 

Mas Gustavo se distrai depois do segundo copo e começa a aproveitar o fim de semana.

Na semana seguinte, a cena se repete. E depois, e depois, e depois… Variam os cenários, mas a culpa gustaviana estará sempre ali.

***

Eu poderia usar essa história para falar sobre procrastinação, mas prefiro falar do (importante) papel do tédio em nossas vidas e no impacto que tem nessa sanha por produtividade que paira sobre a cultura de mercado na qual estamos submersos.

Assumo ser claro que, para nos sentirmos funcionais nessa cultura, precisamos de metas, de planejamento e, principalmente, de ação concreta para alcançá-las. Também não questiono o bem-estar que um chek-list completinho pode nos proporcionar. Nada contra isso, até tenho a minha lista de sonhos, metas e tarefas…

Porém, tão claro quanto a satisfação skinneriana que um planejamento cumprido proporciona, é o elevado grau de adoecimento psicológico que as pessoas nessa mesma cultura vêm experimentando.

No Brasil, em 2017, a depressão e a ansiedade estiveram entre as 20 principais causas de afastamento do trabalho, segundo o INSS – Instituto Nacional da Seguridade Social (1), dividindo o ranking com doenças osteoarticulares e perdas de membros (comumente derivadas de más condições de saúde e segurança laboral) e câncer.

Em Portugal, onde vivo atualmente e que só passou a ter uma aferição estatística dessas doenças a partir de 2013, com o Primeiro Estudo Epidemiológico de Saúde Mental (2) publicado pela DGS – Direção Geral de Saúde, o cenário não é consolador: dos 34 países sondados, a terrinha é o quarto com maior taxa de prevalência da depressão, por ano e ao longo da vida, “perdendo” para o Brasil, EUA e Irlanda do Norte, que ocupam os três primeiros lugares, respectivamente.

Qualquer especulação monotemática da causa para esta situação será, no mínimo, leviana.

A saúde mental é tão complexa quanto o próprio ser humano e não dá para apontar uma causa única e absoluta para a escalada do sofrimento psíquico em nossa sociedade. Mas eu gostaria de apontar uma, para fazer logo a ponte com a historinha do início desse texto: a pressão por resultados.

Instaurou-se sobre a vida de Gustavo uma “teologia da produtividade” que promete recompensas que excedem, em muito, o que no behaviorismo chamou-se reforço positivo. De bônus no holerite à gamificação do ambiente de trabalho, criou-se um aparato condicionante para que ele se mantenha ocupado com atividades que atendem a um propósito que não necessariamente é o dele.

Essa ocupação toda atinge gravemente um outro elemento importantíssimo para que Gustavo preencha com “feito” cada item da sua lista: a vontade – ou o desejo (não vou fazer a diferenciação psicanalítica aqui).

Sem vontade, não dá pra mover uma palha de esforço.

O cérebro (ou a mente, como queiram) é esperto e vai economizar energia para satisfazer o desejo. Não é preciso nem uma vontade específica para aquela atividade em si, mas ao menos uma vontade de se obter a consequência daquela atividade: Gustavo, que não estava a fim de trabalhar naquela semana, mas estava a fim de poder pagar pelo seu chopp na sexta-feira.

Então, fingiu que trabalhou e esteve de corpo presente na empresa durante a carga horária estipulada. Isso foi o máximo de vontade que teve, bastante compatível com o objetivo a ser alcançado, a propósito (julguei…).

A metáfora é com o consumo, porque (infelizmente) nossa realidade é essa.

Apesar de valorizar imensamente um ambiente de trabalho leve, flexível e descontraído, o bônus no salário me parece mais “fair play” como cenoura para se correr atrás. Vivemos sob a lógica do consumo, então, recompensar em dinheiro me soa mais honesto que oferecer o engodo de um ótimo clima organizacional para sugar mais 2 ou 3 horas extras de trabalho por dia.

Só para registrar: um bom ambiente de trabalho é simplesmente obrigatório em tempos de não escravidão e enquanto a economia a vida colaborativa ainda não é a realidade predominante. Penso que, quando esta for a regra, todo o espírito Google de trabalho não só fará sentido de verdade como será o natural. Então, a ideia de que a recompensa financeira é mais honesta é só isso; mais honesta; não significa que seja melhor ou mais saudável, ok? Fecha parênteses.

Acredito firmemente que a disciplina alimenta a vontade ao longo do tempo, transformando-a em hábito, mas é o desejo quem nos faz levantar a bunda do sofá para dar o primeiro passo. Digo “quem” porque o desejo, a meu ver, está indissociavelmente ligado à nossa condição de sujeitos. A faculdade de desejar é uma das coisas que nos torna humanos e nos dá a chance de algum protagonismo. Por isso, me refiro ao desejo aqui como um quem motivador.

Mas, a partir de onde, a partir do que a vontade autêntica pode florescer? Do tédio.

Isso mesmo! Você leu certo.

Antes de continuar, é preciso uma clarificação sobre o que é tédio: trata-se de fazer nada. Nadica de nada. Nada vezes nada. Nada mesmo. Um nada completo. 100% nada. Nothing.

Não é assistir Netflix, não é dar uma corrida, não é fumar um cigarro, não é dormir, não é transar, não é comer, não é comprar algo de que não precisamos, não é tomar um chopp com os amigos, não é rolar a tela do Facebook e do Instagram.

Isso são coisas que muitas vezes fazemos para tentar lidar com o tédio, mas não são o tédio em si.

Tédio, minha gente, é uma sensação geralmente antecedente a essas ações, sobretudo quando praticadas de maneira irrefletida, e sua presença em nosso psiquismo desencadeia outras emoções e sensações, como a preguiça, a melancolia e o nojo, as quais costumamos confundir com ele.

Pois bem.

O sinônimo de tédio que mais gosto é vazio. Experimentar o vazio é fundamental para desligar nossa mente da liturgia produtiva, dar espaço para (re)encontrarmos esse fogo desejante em nós mesmos e, então, sermos capazes de direcioná-lo para uma atividade qualquer, seja ela integrante do nosso check-list ou fruto da nossa mais pura espontaneidade criativa (ou as duas coisas).

Se se desse a oportunidade de alguns momentos de tédio, Gustavo talvez tivesse dias melhores e mesmo mais produtivos no trabalho, tanto para atingir suas metas como para se sentir realizado, preenchido. O tédio abre caminho para que a nossa verdade possa vir à tona e, então, quando surgem aquelas situações menos inspiradoras, temos uma energia reservada para enfrentá-las de cabeça erguida e riscá-las logo da agenda.

Vivenciar o tédio é tão importante que a nossa mente irá nos obrigar a isso nas horas mais inconvenientes.

Quem nunca recebeu a visita deste distinto senhor naquele fim da tarde de quinta-feira ou um pouco antes do almoço de segunda ou ainda às 2h da manhã de terça, sendo que você precisa se levantar dentro de 4h para trabalhar. Há todas as metas para alcançar, mas você está lá, vagando pelas redes sociais, vendo um vídeo engraçado no YouTube ou jogando CandyCrush (Ainda existe? Nunca joguei… Super bem resolvida com meu tédio… #sqn).

Eis o ciclo vicioso: não vivenciamos o tédio adequadamente, nos deixamos levar pelo ímpeto paradoxal de fazer coisas tediosas para nos livrar do tédio, nossa disposição para agir fica prejudicada, não atingimos os resultados que gostaríamos,não nos sentimos merecedores de qualquer recompensa, a culpa se instala nos momentos de lazer, não nos permitimos fruir o lazer, nos ressentimos, minamos ainda mais nossa disposição para realizar aquilo a que nos propusemos, sentimos tédio e…Recomeça tudo.

O que quero dizer é que Gustavo vive numa cultura de resultados que muitas vezes desconsidera fatores importantes para o sucesso como singularidade, autenticidade, apoio e suporte, congruência e consciência. Toda essa busca performática, negligente com aquilo que faz Gustavo um indivíduo capaz,está adoecendo as pessoas.

Vivenciar o tédio é simplesmente crítico para que ele possa entender quais os resultados ele realmente deseja alcançar, como e porquê e não se deixar pautar por uma agenda alheia, que não lhe diz respeito.

Enquanto Gustavo não fizer isso, seguirá tentando ser produtivo, sem muito êxito, pois estará investindo emocionalmente em coisas que não têm nada a ver com sua realidade interior e, pior, estará fazendo isso sem ter a noção de que entrou no jogo só para pagar as contas.

Renata Netto

Renata Netto é advogada e filosofa de formação e atua como dinamizadora de crescimento de advogados, advogadas e escritórios de advocacia, traçando com eles estratégias de liderança, gestão, comunicação e marketing jurídico dentro dos parâmetros legais. Ao nível do voluntariado, facilita um grupo online de mulheres pelo resgate e valorização da força feminina na vida prática.

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Referências:

(1) Dados do Instituto Nacional da Seguridade Social – acesso em 03/02/2019 – http://www.previdencia.gov.br/2018/03/saude-do-trabalhador-dor-nas-costas-foi-doenca-que-mais-afastou-trabalhadores-em-2017/tabela_previdenciario/

(2) Dados da Direção Geral de Saúde de Portugal – acesso em 03/02/2019 – https://www.dgs.pt/ficheiros-de-upload-2013/dms2017-depressao-e-outras-perturbacoes-mentais-comuns-pdf.aspx

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